segunda-feira, 10 de março de 2014

A progressiva dissolução do conceito de filosofia (Olavo de Carvalho)

O historiador Wolfgang Stegmüller, numa página admirável, descreve a progressiva dissolução do conceito de filosofia. Numa primeira fase, diz ele, há uma diversidade de opiniões, na qual se conserva entre os filósofos apenas uma relação de discussão. “A situação já se torna pior quando a base que se tomou como ponto de partida ou os métodos de pensamento forem totalmente divergentes. Então pode-se chegar a um ponto em que já não é mais possível nenhuma discussão... Os argumentos e contra-argumentos parecem cair no vazio.” No entanto, ainda resta aí alguma comunicação. Em seguida, porém, a possibilidade mesma da comunicação desaparece, porque “um não consegue mais atribuir nenhum sentido ao que o outro afirma”. Ainda subsiste, nessa fase, uma vaga identidade de intenções: cada um não entende o que o outro diz, mas acredita que de algum modo ele está também em busca do conhecimento e da verdade. Por fim, atinge-se aquele ponto em que nem essa vaga identidade existe mais: não apenas as afirmações e argumentos de cada um se tornam incompreensíveis aos outros, mas até o tipo de ocupação em que ele está envolvido torna-se um enigma para os outros.

Isso foi escrito em 1976. Na época, já era impossível que um neopositivista devotado a aprimorar logicamente a linguagem das ciências reconhecesse como companheiro de atividade um marxista empenhado em achincalhar a lógica formal como “instrumento do poder burguês”, e ambos não teriam nada a discutir com um existencialista que tentasse expressar o mundo da subjetividade humana.

Desde então, a coisa se complicou formidavelmente. Vieram o estruturalismo e o desconstrucionismo, os cultural studies, o feminismo, o gayzismo e o relativismo, que invadiram os departamentos de filosofia e ciências humanas, reduzindo tudo a disputas de poder. Vieram as neurociências, que pretendem resolver problemas tradicionais da filosofia mediante a fisiologia e a química do cérebro. E sobretudo vieram os computadores, que multiplicaram o número de opinadores em progressão geométrica e ainda tornaram a técnica da argumentação um problema de software.

Tudo isso pode receber, hoje em dia, o nome de filosofia.

A conclusão que se impõe é incontornável: Se aceitamos chamar de “filosofia” tudo aquilo a que hoje se dá esse nome em livros, cursos universitários, revistas acadêmicas, jornais, programas de TV e conversações gerais, é preciso desistir de chegar a qualquer definição razoável de filosofia. Isso não significa que essa noção, em si, seja nebulosa e inalcançável; confusão idêntica se observa na definição de muitas outras atividades humanas, como a política, a religião e até a arte. Na verdade, quanto maior o número de pessoas que falam sobre alguma coisa, mais a imagem dessa coisa tende a se dissolver numa poeira de ambigüidades e de equívocos; e desde o século XIX a quantidade de vozes que espalham opiniões soi disant filosóficas veio crescendo parasitariamente até alcançar as dimensões do inabarcável e do inconcebível. Colocar ordem nesse caos está acima das possibilidades humanas.

(Referência da citação: Wolfgang Stegmüller, A Filosofia Contemporânea. Introdução Crítica, São Paulo, E.P.U.-Edusp, 1977, Vol. I, pp. 12-13.)

(Olavo de Carvalho, 8 de março às 21:18, no Facebook)

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