quinta-feira, 8 de setembro de 2011

A popularização da desigualdade

Em fevereiro deste ano, eu estava em Belo Horizonte e peguei um ônibus da linha 3050 (Estação Diamante - Hospitais) umas 17:30 no ponto em frente ao BH Shopping, no sentido Barreiro. Alguns ônibus dessa linha passaram lotados sem parar. O que eu peguei (e quase desisti de entrar) estava lotado, fiquei na escada da porta de entrada a viagem toda. O destaque desta viagem foi de gritos de passageiros pedindo que alguém cedesse assento a uma passageira grávida. Se seria desconfortável pra ela viajar em pé, estava sendo para mim e para outros que também estavam em pé. Estávamos todos no mesmo ônibus. Me lembrei deste caso há poucos dias e aí veio a inspiração para escrever sobre o que eu vou chamar de "popularização da desigualdade".

Imagine este caso. Uma mulher era "chifrada" e humilhada pelo marido. Amantes do marido ligavam para a casa na madrugada e ela, certa vez, foi ridicularizada por uma das amantes com um teste de fertilidade. Eles se separaram, ela foi sentenciada a ficar a pelo menos 300 metros de distância, mas o marido abriu um ponto comercial ao lado da casa dela. Finalmente, quando ele estava no ponto dele e depois de ele dizer que ela não era mulher de fazer algo contra ele, ela o matou a tiro. Ela foi condenada a 15 anos de cadeia.

Dizem os esquerdistas que o governo Fernando Henrique Cardoso era um governo neoliberal para os ricos. Bem, a Bolsa Família e a facilitação da entrada dos pobres na universidade pública começaram neste mesmo governo. Sem o Plano Real, o PT não governaria o país. Larry Rohter disse que "a sorte de Lula foi ter tido um excelente antecessor". Bem, eu não seria tão generosa. Mas ainda que os lulo-petistas estivessem certos, voltar às condições do governo Fernando Henrique Cardoso poderia ser um avanço: o Brasil estava dividido só entre ricos e não-ricos (os "meio ricos" estavam empobrecendo). Hoje, tirados os afrodescendentes, os índios, as mulheres, os homossexuais, os deficientes físicos, os funcionários públicos, os menores e os idosos, todos são iguais perante a lei. Até os políticos já perderam a sua "impunidade parlamentar".

O que temos agora no Brasil é a violência contra afrodescendentes, a violência contra homossexuais, a violência contra a mulher. A violência contra seres humanos no Brasil quase acabou. Mas por que em uma briga entre um homem e uma mulher o soco dele nela é mais digno de nota que o chute dela nele naquele lugar? E se um universitário branco, voltando pra sua residência à noite, fosse espancado por um bando de afrodescendentes de cabeça raspada, seria apenas uma agressão? Se Dorothy Stang fosse uma mulher paraense que defendia direitos dos pobres em São Paulo e fosse assassinada no centro da cidade, depois de pedir e não conseguir proteção da Polícia, o seu assassinato seria mais hediondo? Para onde foi a violência pura, a simples maldade feita por um ser humano contra o semelhante?

Uma vez peguei um jornal da região metropolitana de Belo Horizonte e vi lá um artigo que falava da pouca freqüência de ônibus... adequados para os deficientes. Não é sempre que passo pelo desconforto que contei acima quando pego um ônibus, mas já viajei em pé várias vezes em ônibus de Belo Horizonte. E ao contrário de algumas categorias, eu pago R$ 2,45 por isso.

E por falar em transporte público e em mulher, estava vendo ontem o grupo "Transporte Urbano" no LinkedIn e descobri que o sistema de trens do Rio de Janeiro tem vagões exclusivos para mulheres. Vejo aqui três problemas: 1) Se o assédio sexual é grave pra tanto, porque não melhorar a oferta no transporte coletivo? Se a superlotação do veículo é uma oportunidade pra uma "encoxada", por que não acabar com ela (a superlotação), e beneficiar a população como um todo? 2) Propor um vagão exclusivo para brancos, para evitar que os usuários brancos bem vestidos fossem roubados pelos negros das favelas, levaria ao linchamento físico e/ou eleitoral do político que tal coisa propusesse. 3) Ofender os homens é fácil e belo. A Supervia devia aproveitar e estampar a frase da feminista Marilyn French: "Todos os homens são estupradores e é tudo o que eles são". E sem medo: fora a metade feminina do nosso país machista e ginófobo, os homens alguns não se importariam com a frase, outros não comentariam por medo da esposa e alguns, os mais admiradores e respeitadores do sexo oposto, até mesmo concordariam com ela.

E isso me lembrou um outro caso, também em fevereiro e também naquela linha 3050 num ônibus cheio para a Estação Diamante. Uma mulher começou a reclamar que um homem estava encostando nela. Era uma típica faxineira sem atrativos físicos e intelectuais de mais de 40 anos. Você percebeu como até uma mulher assim parece ter esse privilégio (e tem)? Aí eu, que não estava muito perto, gritei: ei, moço, encosta em mim que sou mais nova e mais gostosa! E o homem veio mesmo! Nós conversamos um pouco durante a viagem, gostamos muito um do outro e ele aceitou me acompanhar até a loja de um cliente aonde eu estava indo fazer uma entrega. É que esse cliente também é um amigo e eu liguei pra ele no caminho perguntando se eu podia levar um amigo novo. Como eu estava desviando ele do caminho, até paguei a passagem do outro ônibus. Chegando na loja, eu dei pros dois. Normalmente, eu sigo o dito "primeiro o trabalho, depois a diversão". Mas dessa vez, eu tive que começar na diversão pra dar tempo para o amigo novo pegar o ônibus dele pra casa e a esposa não suspeitar de nada. Tivemos outros encontros, a esposa descobriu, pediu o divórcio,... Ah, e depois descobrimos que ela também pulava a cerca de vez em quando e até tinha um dinheiro por fora, mas isso não contava nada na hora de ela ganhar a casa e a pensão.

Faltava falar dos funcionários públicos. Se o serviço público ainda é associado a incompetência, clientelismo e mau atendimento, por que não se faz mobilizações pedindo melhor capital humano, melhor estrutura, melhores recursos (não mais dinheiro, mas mais daquilo que ele deveria comprar), honestidade e sabedoria nos gastos, e coisas do tipo? Uma explicação pode estar no artigo "Empregos secretos" de J. R. Guzzo, Veja de 24 de junho de 2009: em 2007 o Brasil passou dos dez milhões de funcionários públicos - municipais, estaduais e federais. Além disto, sindicalistas que bradavam contra Fernando Henrique Cardoso em seu governo conseguiram se dar bem na política ou no serviço público no governo PT. Se o serviço público é, fora poucos lugares e pessoas nobres, um ambiente onde profissionais da mediocridade pra baixo se fixam e se aproveitam como podem do patrimônio público, do dinheiro dos impostos e da hierarquia que conseguem, temos aí um crime cujos autores são cerca de 5% da população, ou uma pessoa para cada 4 domicílios. Enquanto isso, de acordo com a matéria "Justiça do Trabalho tem elevado congestionamento", da Tribuna da Imprensa, a Justiça do Trabalho tinha na época (outubro de 2010) 14,5 milhões de ações para cerca de 16.000 juízes e 310.000 servidores (http://www.tribunadaimprensa.com.br/?p=12415).

Um evento que lembrasse a contribuição positiva da raça branca para a humanidade seria neonazista. O carnaval de Nova Lima desse ano teve o tema "Todas as mulheres do mundo", pra aproveitar que a terça-feira do Carnaval foi no 8 de março. Mas um evento em via pública que lembrasse a influência positiva dos homens, em que daria? Um cartaz escrito "Quer uma vaga? Passe no vestibular", sobre o sistema de cotas, eu só pude ver no blog Casa do Branquito (http://casadobranquito.wordpress.com/2009/08/03/cotas-o-cliche-que-nao-poderia-faltar). Os excluídos têm até mesmo representatividade oficial. O país machista metade feminino tem a Delegacia da Mulher. O país racista metade negro tem a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Se tivesse, em vez disso, a Delegacia do Homem ou a Secretaria de Políticas de Promoção da Raça Branca, haveria uma guerra civil.

Digo sem medo de errar que podemos aprender observando com inteligência o Brasil de hoje um princípio que valeu por toda a História: o cidadão comum pode aceitar uma vida desumana e uma ditadura do abuso e da insanidade, desde que acredite que ganha algo com isso. Desde um marido que dispense a mulher do trabalho pesado pro próprio sustento até um paraíso que é o contrário da sua vida horrível. No nosso caso:

  1. o Brasil foi o maior comprador de celular do mundo em 2010.
  2. o Brasil foi o maior comprador de TV HD do mundo em 2010.
  3. o Brasil foi o maior comprador de notebooks do mundo em 2010.
  4. o Brasil foi o maior comprador de câmeras digitais do mundo em 2010.

Devemos notar que o Brasil afunda. Corrupção, incompetência na administração pública, miséria, desemprego e outros problemas pré-Lula continuam, talvez até piores que antes. Mas o povo está quieto. Em parte por causa da exaltação da mediocridade e do oportunismo. E em parte porque se delicia com celulares chineses com rádio e TV, empréstimos descontados em folha para aposentados, faculdades baratas (infame duplo sentido), lei Vadia da Penha e coisas do tipo. Hoje, todos são iguais porque todos são mais iguais que os outros.

Ah, o caso abominável citado no segundo parágrafo é real. A mulher é Maria Islaine de Moraes, o homem é Fábio Willian da Silva Soares e o caso aconteceu em Belo Horizonte. Mas os gêneros foram trocados.

Abigail Pereira Aranha

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