sábado, 27 de junho de 2015

O mito do desenvolvimento e o futuro do Terceiro Mundo, de Celso Furtado: esquerdista desmascara em 1973 as melancias de hoje

O mito do desenvolvimento e o futuro do Terceiro Mundo

Celso Furtado

O estudo preparado para o Clube de Roma sobre as conseqüências a longo prazo da expansão da economia mundial tem sido objeto de amplo debate nos países industrializados. (1) Mas nos países do Terceiro Mundo, que seriam os mais diretamente afetados, caso fossem postas em prática as medidas de política econômica e social preconizadas nesse estudo, o interesse pela matéria tem sido pequeno. Muitas pessoas viram nesse trabalho um elemento adicional da campanha, orquestrada nos Estados Unidos, pelo controle da natalidade nos países pobres, campanha essa que não discrimina entre nações com 300 habitantes por km2 e outras com uma densidade demográfica 30 vezes menor. Outras pessoas identificam nele uma peça na campanha visando a reestabelecer uma rígida tutela sobre os países do Terceiro Mundo, exatamente quando estes começam a libertar-se dos supostos "automatismos dos mercados", graças aos quais os preços dos produtos que exportam puderam ser mantidos baixos em benefício dos países industrializados.

Ora, seria difícil exagerar a importância desse estudo, não tanto pelo que ele pretende demonstrar mas pelas inferências que decorrem dos esquemas nele apresentados. Pela primeira vez dispomos de uma tentativa de análise do comportamento da economia mundial em seu conjunto. Até o presente, os economistas se haviam limitado ao estudo da estrutura e funcionamento de subsistemas, isto é, de economias nacionais ou regionais. Assim, nos últimos vinte anos, os americanos realizaram toda uma série de estudos sobre as tendências a longo prazo da economia dos Estados Unidos, particularmente no que respeita ao comportamento futuro da demanda de recursos naturais não renováveis. Essas projeções são feitas a partir da hipótese implícita de que o mundo fora dos Estados Unidos é ilimitado; o que se tem em vista é determinar o grau de dependência futura do país com respeito à oferta externa de recursos e as possíveis repercussões nos preços de mercado decorrentes do crescimento da demanda de outros países industrializados. Dados recentes publicados pelo Ministério do Interior do governo dos Estados Unidos indicam, por exemplo, que dos treze principais produtos minerais requeridos para o funcionamento da economia do país todos menos um (fosfatos) serão principalmente importados no fim do século atual. Já em 1985 nove dos referidos produtos serão principalmente importados, enquanto em 1970 apenas cinco dependiam mais da importação do que da produção interna. O abastecimento de um produto como o cobre, com respeito ao qual os Estados Unidos eram auto-suficientes em 1970, no ano 2000 dependerá de importações em 56 por cento. A situação do enxofre é idêntica. Se passarmos para os combustíveis, encontraremos tendência similar, pois de grande exportador de petróleo que foi no passado, esse país se está transformando em grande importador. Segundo as previsões do Ministério do interior, o valor das importações americanas de petróleo passará, a preços de 1970, de 8 bilhões de dólares nesse ano, para 31 bilhões em 1985 e 64 bilhões quinze anos depois.

O estudo preparado para o Clube de Roma não se preocupa diretamente com o problema da crescente utilização pela economia norte-americana e de outros países industrializados dos recursos naturais do Terceiro Mundo, e muito menos com as conseqüências para esses países desse processo. A atenção dos autores esteve concentrada na seguinte questão: que acontecerá se todos os países persistem no propósito de continuar expandindo sua produção? A resposta fornecida pelos computadores é inequívoca: a pressão sobre os recursos não renováveis e o grau de poluição do meio físico serão tão altos (ou, alternativamente, o custo do controle da poluição será tão grande) que o sistema tenderá inexoravelmente para o colapso. Cabe acrescentar que, em razão da estrutura do sistema, grande parte do que acontecerá no futuro decorre de decisões tomadas no passado ou que estão sendo tomadas hoje sem consciência de suas repercussões. Assim, a poluição a ser combatida no futuro decorre em grande parte de decisões tomadas em anos passados; a oferta de mão-de-obra a ser absorvida nos próximos vinte anos resulta de nascimentos já ocorridos, etc.

A novidade desse estudo não está nos materiais que utiliza ou nas relações de causalidade que postula e sim no fechamento do sistema em escala planetária, o que foi possível graças a enormes recursos de computação. A hipótese de um mundo exterior ilimitado, implícita nos modelos anteriores, pôde ser abandonada. Esse passo decisivo permitiu que se explicitasse um dado fundamental com o qual o homem jamais quis confrontar-se: fato elementar de que o processo civilizatório, tal qual o praticamos, é de caráter essencialmente predatório, quando observado de um ângulo mais geral; a criação de valor, em nossa civilização, engendra processos não reversíveis de desorganização do mundo físico; assim, grande parte de nossos processos produtivos implicam em transformação de energia disponível em energia não disponível, o que é um processo não reversível, conforme nos explica a termodinâmica. (2) A tendência do leitor congenitamente otimista, nascido neste mundo de alucinante progresso, é retorquir: previsões desse tipo falharam porque não levaram em conta o progresso técnico. Ora esse argumento é inconsistente, pois antes nunca se havia fechado o sistema, ou seja, nunca se havia passado da análise parcial à global. O progresso técnico pode mesmo acelerar o seu ritmo, sem que por isso nossa civilização seja menos predatória.

O modelo utilizado para as projeções é inobjetável do ponto de vista de sua consistência interna. Ocorre, porém, que sua estrutura foi estabelecida a partir de dados que refletem o comportamento das economias atualmente industrializadas, ou melhor, refletem o processo de industrialização ocorrido nas chamadas economias cêntricas ou dominantes. Os autores do estudo foram explícitos, dede o começo, com respeito à metodologia adotada.

"A base do método", nos dizem, "é o reconhecimento de que a estrutura de qualquer sistema - as múltiplas relações, circulares, interligadas e às vezes assincrônicas, entre seus componentes - é freqüentemente tão importante na determinação de seu comportamento quanto seus próprios componentes de per si" (pág. 31). E mais adiante acrescentam: "... neste ponto é necessário um alto grau de agregação para manter o modelo inteligível... As fronteiras nacionais não são levadas em consideração. Desigualdades de distribuição de alimentos, recursos e capital estão incluídas implicitamente nos dados, mas não foram explicitamente calculadas ou representadas graficamente no produto" (pág. 94).

A pergunta que cabe formular é a seguinte: dispomos de conhecimento suficiente da estrutura do sistema econômico mundial para projetar as suas tendências a longo prazo? Tem validade, por exemplo, a afirmação que fazem os autores de que "a medida que o resto do mundo for se desenvolvendo do ponto de vista econômico, seguirá basicamente os padrões de consumo norteamericanos"? (pg. 109). Nessa afirmação vai um desconhecimento total da especificidade do fenômeno do subdesenvolvimento, o qual não constitui uma fase no processo de desenvolvimento, como pretende a escola de Rostow, e sim uma deformação provocada pelas relações particulares surgidas entre países dominantes e países dependentes a partir da Revolução Industrial. (3) Não é muito o que sabemos do fenômeno do subdesenvolvimento, mas o que sabemos é suficiente para nos convencer de que o atual processo de industrialização da periferia do mundo capitalista (processo baseado na substituição de importações a serviço de minorias privilegiadas ou de exportação de mão-de-obra barata em indústrias de exportação) é estruturalmente distinto do processo de industrialização dos centros dominantes da economia mundial, ocorrido nos dois primeiros terços deste século, e que serviu de base para estabelecer a estrutura do referido modelo.

A industralização do centro do sistema capitalista baseou-se, essencialmente, na difusão dos frutos do progresso técnico, isto é, na criação de mercados de massa. Essa industrialização, no quadro das economias nacionais, realizou-se paripassu com a elevação de salários reais, o que não impediu que se mantivesse, sem maiores alterações, a renda altamente concentrada. Porque a renda se mantém altamente concentrada, a necessidade de introduzir novos produtos é permanente; mas ao se elevarem os salários reais formam-se os mercados de massa à la americana, o que abre o caminho às economias de escala de produção.

A experiência de países como o Brasil, o México e a Índia está demonstrando que esse modelo de industrialização não se reproduz na perfieria do mundo capitalista. A reprodução pelas minorias dominantes desses países dos estilos de vida dos países ricos exige tal concentração de renda que o processo de industrialização tende a ser basicamente diferente. Trata-se de transpor, para países em que o capital acumulado por habitante é relativamente exíguo, formas de consumo que são a resultante de forte acumulação de capital obtida através de um longo processo de industrialização e de relações internacionais de dominação. A fim de que cinco por cento da população do Brasil desfrute de níveis de vida que correspondem a uma renda média de três mil dólares, quando a renda média do país é de quatrocentos, oitenta por cento da população tendem a ser totalmente excluídas dos benefícios dos incrementos de produtividade, o que dá lugar a um tipo de estrutura industrial sem qualquer correspondência com a dos países industrializados, quando nestes a acumulação de capital era similar à de que dispõe o Brasil hoje.(4)

A estrutura de um modelo da economia mundial deverá, para ser realista, ter em conta essa diferença qualitativa entre o capitalismo cêntrico ou dominante e o capitalismo periférico ou dependente. (5) O primeiro está baseado na introdução de novos produtos e na difusão do uso de novos produtos, isto é, no consumo de massa; o segundo se baseia na imitação tecnológica e na concentração da riqueza e da renda. Como é no âmbito periférico que tem lugar a grande expansão demográfica, a ignorância dessa disparidade estrutural leva necessariamente a resultados irrealísticos nas projeções de tendências.

O postulado da existência de uma economia capitalista mundial com estrutura homogênea constitui a razão de ser das conclusões cataclísmicas a que leva o estudo que estamos considerando. Ora, a única coisa que sabemos de seguro sobre a industrialização dos países de capitalismo periférico é que as grandes massas não têm acesso aos frutos do incremento de produtividade. Um modelo que tivesse em conta que apenas cinco por cento dos bilhões que vivem e crescem no Terceiro Mundo terão efetivamente acesso ao american way of life e que os 95 por cento restantes permanecerão perto do nível de subsistência, produziria necessariamente conclusões muito distintas. O crescimento demográfico prosseguirá, nos países do Terceiro Mundo, enquanto existam terras a serem ocupadas - o que ainda é regra geral em quase toda a América Latina, grande parte da África e certas regiões da Ásia - ou enquanto a intensificação no uso da terra se possa realizar sem aumento excessivo nos custos de produção em termos de hora de trabalho. (6) Contudo, pelo fato mesmo de que o grosso da população dos países do Terceiro Mundo permanece perto do nível de subsistência, e nada indica que tal situação se modificará, a evolução demográfica desses países continuará a depender da disponibilidade de terras (ou da possibilidade de intensificar o uso destas) nos respectivos países. Não se exclui a hipótese de uma série de cataclismas locais, como o que atualmente ocorre num grupo de países da África Ocidental, os quais atuarão como um freio ao crescimento demográfico. O que parece pouco realista é supor que tais cataclismas tenham repercussões maiores nos países ricos, ou ponham em perigo o funcionamento do sistema econômico mundial.

Se considerarmos à parte o grupo de países capitalistas de economia dominante, veremos que para estes o problema é muito mais de dependência com respeito à importação de matérias-primas - em razão do esgotamento das próprias reservas - do que de crescimento exponencial da demanda. O lento crescimento demográfico conjugado a uma alta renda per capita produz um lento crescimento da demanda de produtos básicos, inclusive alimentos em bruto, ao mesmo tempo que se eleva a possibilidade de reciclagem de certos metais. Assim, o consumo de cobre por habitante triplicou nos Estados Unidos, entre 1900 e 1940; mas entre este último e 1970 manteve-se praticamente estável. O consumo de aço por habitante mais que triplicou nesse país, entre 1900 e 1950, mas permaneceu estável nos últimos vinte anos. Em realidade, o consumo de metais básicos por habitantes é aproximadamente igual num importante grupo de países industrializados (grupo que inclui os Estados Unidos, a Alemanha Ocidental, o Japão, a Suécia) se bem que dentro desse grupo as diferenças de renda per capita variem de 1 para 2. Não há dúvida de que no último quarto de século houve um considerável aumento da demanda de produtos básicos em um grupo de países industrializados que haviam acumulado um grande atraso em sua industrialização, com respeito aos Estados Unidos. Mas a própria experiência norte-americana está aí para demonstrar que a curva desse crescimento é assintótica. Essa não linearidade da demanda de produtos básicos foi aliás incorporada ao modelo que estamos considerando. (7)

Se dispuséssemos de meios para projetar separadamente as economias capitalistas cêntricas e as periféricas, estaríamos seguramente muito mais próximos da realidade do que com o modelo de estrutura integrada elaborado pelo grupo do M. I. T. A hipótese de colapso somente teria fundamento se o sistema tendesse a generalizar em escala planetária a atual forma de vida (e de desperdício de recursos) dos países capitalistas cêntricos. Ora, a tendência estrutural do sistema é exatamente no sentido inverso, ou seja, para concentrar a renda e a riqueza em benefício dos países ricos, em escala planetária, e dentro dos países pobres em benefício das minorias ricas.

Chegamos, assim, por meios indiretos, a uma conclusão da maior importância: o estilo de vida produzido pelo capitalismo industrial deve ser preservado para uma minoria, pois toda tentativa de generalização do mesmo ao conjunto da humanidade provocará necessariamente um colapso global do sistema. Esta conclusão tem imenso significado para os países do Terceiro Mundo, pois ela põe em evidência que o desenvolvimento econômico que vem sendo preconizado e praticado nesses países - o suposto caminho de acesso às formas de vida dos atuais países desenvolvidos - é um simples mito. Sabemos agora que os países do Terceiro Mundo não poderão jamais desenvolver-se, se por isso deve entender-se ascender às formas de vida dos atuais países desenvolvidos. Se por um milagre esse desenvolvimento viesse a ocorrer, o sistema entraria necessariamente em colapso. Pode-se levar mais longe o raciocínio e afirmar: a forma que assume atualmente a industrialização periférica, com exclusão das grandes massas dos benefícios dos aumentos de produtividade do trabalho, não decorre do acaso nem somente da malícia das elites dos países do Terceiro Mundo; ela também resulta da necessidade de conciliar o grande desperdício de recursos inerente ao sistema com a rigidez crescente da oferta de certos recursos naturais não renováveis. Essa conciliação é evidentemente realizada em função dos interesses das economias dominantes.

Identificar as tendências estruturais de um sistema social não significa prever o seu futuro. A história é um processo aberto à intervenção humana. Não se exclui a hipótese de que ocorram em um número crescente de países do Terceiro Mundo mutações sociais, das quais resultem alterações na estrutura do sistema econômico. Poderiam tais mudanças pôr em marcha forças tendentes a produzir o colapso do sistema global, caso propiciem a generalização à maioria da população dos benefícios do desenvolvimento econômico? Nada indica que uma tal situação venha a produzir-se, pois o caminho que tenderiam a adotar esses países, em tal hipótese, seria o de redução de consumo das elites privilegiadas. É evidente que em um país como o Brasil, onde um por cento da população se apopria de uma parte tão grande da renda como a que corresponde à metade da população mais pobre, o caminho mais curto para difundir os benefícios do desenvolvimento passa pela redução do consumo da minoria privilegiada. Em outras palavras: toda modificação das tendências atuais provavelmente assumirá a forma de uma orientação global do sistema econômico, ao nível nacional, visando a subordinar a alocação dos recursos escassos a critérios sociais.

Contudo, seria ingênuo postular que todo sistema econômico orientado com critérios sociais está isento de tendências predatórias com respeito ao meio físico. A quem caberá definir a função de bem-estar social? Quem arbitrará entre vantagens presentes e futuras, entre vantagens em benefícios de pessoas já nascidas e pessoas a nascer no próximo século? De decisões intertemporais deste tipo depende a preservação ou a destruição dos recursos não renováveis e a acumulação de poluentes. Se o capitalismo agrava o caráter predatório do comportamento dos grupos sociais, não o explica em sua totalidade. Tudo indica que o homem continuará a transformar o mundo físico, e o fará provocando processos de desorganização irreversíveis.

A primazia do interesse social, no que respeita à utilização de recursos escassos, poderá, contudo, abrir o caminho para modificações estruturais de grande alcance. Essa afirmação é particularmente verdadeira com respeito a países que enfrentam uma grande penúria de capital, como são os do Terceiro Mundo. A adoção de critérios sociais nesses países produzirá necessariamente sociedades muito mais igualitárias do que aquelas que atualmente existem nos países capitalistas cêntricos, ou que existiram nesses países em toda a história de sua industrialização. Ora, nada é tão específico da civilização criada pelo capitalismo industrial quanto o seu caráter não igualitário. A riqueza dessas sociedades mascara esse fenômeno, o qual não escapa, contudo, a qualquer observador mais arguto. Esse não-igualitarismo está na base do sistema de inscrições que move a economia capitalista e permeia toda a escala de valores pela qual se orienta. As elites ditam os padrões de comportamento em função dos quais novos produtos são permanentemente criados. Visto o problema de outro ângulo: para que os grupos de altas rendas mantenham o seu consumo em expansão, novos produtos e novos modelos devem surgir de forma permanente e a obsolescência social dos que existem deve ser acelerada. Existe uma inter-relação entre a rapidez desse fluxo renovador do consumo dos grupos de rendas altas, a taxa de lucro e o grau de concentração da renda. Não há dúvida que o capitalismo cêntrico depende, igualmente, para o seu normal funcionamento, da produção em massa para o consumo. Mas são os grupos de altas rendas que precisam ser excitados para manter os seus gastos de consumo em expansão, pois o consumo das massas tende a acompanhar o nível dos salários reais, comportando-se como variável dependente. Além do mais, os padrões de rápida obsolescência estabelecidos para aumentar o consumo dos grupos de altas rendas tendem a propagar-se ao conjunto da economia, dando origem ao considerável desperdício que caracteriza o capitalismo industrial.

É evidente que esse sistema é totalmente inadequado para elevar o nível de vida das grandes massas do Terceiro Mundo. E também é evidente que, eliminada a tutela das elites na definição dos padrões de consumo, o sistema produtivo poderá mais facilmente orientar-se no sentido de simplificar o consumo e dotar de longevidade o que produz. Em outras palavras: o progresso técnico orientar-se-ia no sentido de economizar tudo que é escasso e não de acelerar a obsolescência dos bens finais. Sendo assim, uma reorientação do desenvolvimento nos países do Terceiro Mundo contribuiria para reduzir o desperdício dos recursos não renováveis que caracteriza o sistema atual. Mas daí não se pode deduzir que a pressão sobre esses recursos se reduza, pois o menor consumo das elites poderá ser mais que compensado pelo maior consumo das massas. O máximo que se pode afirmar é que essa pressão será muito inferior à que existiria caso se difundissem as formas de vida que atualmente prevalecem nos países de capitalismo dominante.

Cabe deduzir do que vem de ser afirmado que também marcharemos para o colapso a que se refere o estudo do M.I.T., caso os países do Terceiro Mundo abandonem o estilo de desnvolvimento elitista que praticam atualmente? Chegaremos a essa conclusão se ignorarmos outros aspectos do problema. A reorientação do desenvolvimento não poderá ter lugar senão naqueles países em que se produza um grande reforçamento dos centros internos de decisão. Seria difícil conciliar essa reorientação com a permanência do controle dos sistemas industriais locais pelas empresas multinacionais, cuja força deriva de uma tecnologia que por definição seria inadequada ao novo estilo de desenvolvimento. Por outro lado, a partir do momento em que as fontes de recursos não renováveis (inclusive os solos utilizados na produção agrícola) sejam nacionalmente controladas e postas a serviço da nova política de desenvolvimento, a repercussão nos preços internacionais dos produtos básicos terá que ser considerável. A ficção dos mercados internacionais desses produtos tenderá a desaparecer e os aspectos essencialmente políticos da formação dos preços relativos dos mesmos virá plenamente à luz. Nestas condições, os preços relativos dos produtos não renováveis tenderão a elevar-se, o que obrigará os países ricos a reorientar o progresso técnico no sentido de poupar esses bens. Concomitantemente, como conseqüência da modificação dos preços relativos em favor dos produtos não renováveis, importantes transferências de renda se fariam em benefícios dos países do Terceiro Mundo, o que facilitaria o desenvolvimento destes e reduziria o ritmo de acumulação dos países ricos. Como são os países do Terceiro Mundo que estarão utilizando mais racionalmente os recursos não renováveis, o efeito final da transferência de renda no uso desses recursos será positivo.

Em síntese: uma análise mais detida da estrutura do sistema capitalista, na fase atual de industrialização da periferia, indica que as grandes massas são atualmente excluídas dos frutos dos aumentos de produtividade. Por outro lado, no caso de emergência de mutações sociais, muito provavelmente tenderá a prevalecer um estilo de desenvolvimento fundamentalmente diverso preocupado prioritariamente com necessidades cuja satisfação pode ser generalizada ao conjunto da população. Nas duas hipóteses a pressão sobre os recursos não renováveis tenderia a ser consideravelmente menor do que a que se deduz das projeções do estudo do M.I.T. Para as massas crescentes que, após dois séculos de Revolução Industrial, vivem ao nível de subsistência, a ameaça real consiste em permanecerem onde estão, enquanto os seus respectivos países se dotam de fachadas industriais em benefício de minorias locais e grupos ligados às economias dominantes. O cenário descrito pelos técnicos do M.I.T., que implica na ascensão dessas massas a níveis de consumo similares aos das populações da Europa ocidental atual para logo em seguida enfrentarem o Julgamento Final, constitui simples fantasia, ainda que fascinante, digna de um cérebro eletrônico.


(1) Cf. The Limits to Growth (Universe Books, New York, 1972). Este estudo foi preparado no Massachussetts Institute of Technology por Donella H. Meadows, Dennis L. Meadows, Jorgen Randers e William W. Behrens III. Sobre a metodologia adotada nesse trabalho veja-se J. W. Forrester, Industrial Dynamics (Cambridge, Mass. 1961) e World Dynamics (Cambridge, Mass. 1971).

(2) Para uma apresentação sistemática desse problema veja-se o trabalho magistral do Prof. Nicholas Georgescu-Roegen, The Entropy Law and the Economic Process (Cambridge, Mass. 1971).

(3) Cf. Celso Furtado, Teoria e Política do Desenvolvimento Econômico (4ª edição, São Paulo, 1972), passim.

(4) Sobre a distribuição da renda nos países da América Latina veja-se Celso Furtado, Formação Econômica da América Latina, pp. 100-110. As estatísticas disponíveis com respeito ao processo de industrialização dos Estados Unidos, da França, da Inglaterra e da Alemanha indicam uma aparente estabilidade na repartição tanto social como funcional da renda, no correr do último século, tidos em conta os efeitos da política social. Vejam-se os dados reunidos a esse respeito por Jean Marchal e J. Lecaillon, in La répartition du Revenu national, volumes I e II (Editions Gênin, Paris, 1958). Os dados referentes ao Brasil não somente indicam um grau de concentração muito mais elevado que em qualquer país industrializado, mas também uma agravação dessa concentração nas fases de intensificação do crescimento econômico. Por exemplo: durante o decênio dos 60 a renda por habitante aumentou de um terço no Brasil, mas todo o benefício do aumento se concentrou nos 20 por cento mais ricos da população, particularmente nos 5 por cento mais ricos, cuja renda per capita dobrou durante esse decênio.

(5) Esse modelo deverá igualmente ter em conta o grau de mobilidade internacional da mão-de-obra. A população mundial não está distribuída em um sistema de vasos comunicantes. Portanto, a pressão exercida sobre os recursos em um país não se comunica necessariamente aos demais.

(6) A ignorância dos aspectos institucionais ligados à utilização da terra leva os autores do estudo do M.I.T. a afirmar: "Se terras boas e férteis ainda fossem facilmente encontradas e pudessem ser cultivadas, não existiria nenhuma barreira econômica para alimentar os famintos e nenhuma opção social difícil a ser feita" (pág. 52). Ora, em um país como o Brasil a abundância de terras cultiváveis não utilizadas, muitas vezes de fácil acesso, não impede que uma parte importante da população rural apresente todos os sintomas de extrema subnutrição. Nesse, como noutros países da América Latina, é comum ver os minifundistas empilhados em terras insuficientes para absorver a capacidade de trabalho de uma família ao lado de latifúndios que utilizam menos de um décimo das terras de que dispõem. Veja-se Celso Furtado, Formação Econômica da América Latina, pp. 89-99.

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FURTADO, Celso. O mito do desenvolvimento e o futuro do Terceiro Mundo. Argumento, nº 1, ano 1, outubro de 1973. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, pág. 46-53. A nota de rodapé nº 7 está faltando no original.

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