sábado, 12 de setembro de 2015

A mediocracia na cultura

Abigail Pereira Aranha

Livro mais vendido da Bienal é de uma "youtuber"

por Ancelmo Gois

05/09/2015 06:50

Até agora, o livro mais vendido da Bienal é "Muito mais que cinco minutos", da "youtuber" (é o cacete!) curitibana Kéfera Buchmann, 22 anos.

A Editora Paralela tinha impresso 70 mil cópias. Agora, fez mais 50 mil.

Nas redes sociais, Kéfera tem mais de 12 milhões de seguidores.

Aliás...

Ontem, outro "youtuber", Christian Figueiredo, 20 anos, do best-seller "Eu fico loko" e que tem mais de cinco milhões de seguidores, provocou cenas de beatlemania na Bienal.

Uma das fãs pulou a grade de proteção do Palco Maracanã — onde Christian foi recebido por mais de mil fãs. Foi retirada pela segurança.


5incominutos | Reprodução

Sobre os autores

Ancelmo Gois

Ancelmo Gois

Ancelmo Gois, 66 anos, é, modéstia a parte, sergipano de Frei Paulo, casado com Tina, pai de Antonio e Bia, avô de Carol, Francisco e Rosa. Gosta de carne do sol, carnaval, cuscuz de milho, livros biográficos e suco de umbu

Ana Cláudia Guimarães

Ana Cláudia Guimarães

Editora do blog, Ana Cláudia Guimarães, jornalista, trabalha com Ancelmo Gois desde que ele chegou ao jornal. Ganhou o Prêmio Tim Lopes com a reportagem Mulheres no Tráfico, ao lado do jornalista Eduardo Auler. Repórter em tempo integral

Aydano André Motta

Aydano André Motta

Jornalista que dedicou a maior parte da carreira à cobertura de Cidade e Esportes.Pesquisador da história das escolas de samba e do Carnaval carioca. Autor de três livros sobre o tema

Daniel Brunet

Daniel Brunet

Pós-­graduado em Análise de Políticas Públicas, pelo Instituto de Economia da UFRJ, Daniel Brunet foi finalista do Prêmio Embratel com a série "Crise na saúde", que revelou que 8,6 pessoas morrem, por dia, nas CTIs da rede estadual

Marceu Vieira

Marceu Vieira

Jornalista, compositor, autor de "Nada não e outras crônicas" e co-autor de "Betinho: no fio da navalha", "Jornalistas que valem mais de 50 contos" (coletânea) e "Bip Bip, um bar a serviço da alegria" (com Luís Pimentel e Francisco Genu)

Tiago Rogero

Tiago Rogero

Jornalista, mineiro radicado no Rio, trabalhou em O Estado de S. Paulo e BandNews FM

http://blogs.oglobo.globo.com/ancelmo/post/livro-mais-vendido-da-bienal-e-de-uma-youtuber.html (na seção "Sobre os autores", grifo meu)

Meus comentários


Fatos Desnecessários, https://www.facebook.com/fatosdesnecessarios/photos/a.177474172454636.1073741827.177473629121357/484632958405421

É engraçado que eu vi este caso na semana passada, eu escrevi uma série de três textos em 6 dias sobre como a direita cristã não é opção cultural à esquerda, pelo menos não como está hoje, e o Olavo de Carvalho publicou o artigo "O império da ignorância" no Diário do Comércio da Associação Comercial de São Paulo anteontem.

Já temos o "funk carioca" como patrimônio cultural do estado do Rio de Janeiro. Para quem não é do Brasil, o funk carioca, também chamado de funk, lembra o hip hop, só que é muito pior. Tivemos um professor da maior universidade do país, a USP que é posição 127 no mundo, que fugiu de um desafio público para um debate em 2013 sobre a sua própria área, Filosofia, e foi nomeado ministro de Educação e Cultura neste ano. Temos uma lei que é dita de incentivo à cultura, mas que só nos dá bajuladores de talento medíocre sustentados com dinheiro público. O artigo do prof. Olavo descreve muito bem, naquela cota que ele tinha para o artigo, como o que devia ser a elite intelectual do Brasil é um clube de subintelectuais desinformados cultivando vaidades. Ah, indico também o artigo "A origem da burrice nacional", também dele, publicado na revista Bravo de dezembro de 1999 e janeiro de 2000. Aqui, eu vou fazer uma abordagem diferente: além de uma alta cultura empobrecida de cima, nós temos a pobreza cultural entronizada como alta cultura de baixo para cima.

Aquela senhorita é desqualificada por ser uma vlogueira com menos de 30 anos? Não. O Felipe Neto também é, e tem um trabalho razoável. O Felipe Moura Brasil também é, e tem um trabalho muito bom no Youtube, na blogosfera e no portal da revista Veja. A desqualificação da srta. Kéfera Buchmann está nela mesma, a própria imagem do canal dela na matéria não é convidativa para quem tem algo que preste na cabeça. Mas a grande questão nem é ela escrever uma autobiografia que não parece muito interessante, é ela escrever essa autobiografia, estar na referência nacional do mercado de livros e, pra piorar, ter o livro mais vendido.

Vou mostrar alguns comentários de chorar, também há muitos bons, naquela postagem da Fatos Desnecessários sobre o caso:

Barbara Araujo .....só porquê é o livro de uma youtuber ? se o livro fosse tão ruim não seria o mais vendido da bienal . e outra parem se ser preconceituosos isso é cultura também ...aposto que muitos nem leram, parem de ficar julgando..

Jhulia Medeiros Já ouviram falar em literatura contemporânea? Pessoal ta apegado ao século passado... O importante é ler, cara.

Daniela Souza Enquanto os trouxas discutem, ela vai ganhando mais e mais dinheiro.... ??

A esta última, eu respondi: "Enquanto nós discutíamos o Mensalão, os mensaleiros ganhavam mais e mais dinheiro". Mas um outro comentário eu faço questão de mostrar conforme o original:

Izabela Silva N é pq vc n gosta q ngm pode gostar '-'

Em português: "Não é porque você não gosta que ninguém pode gostar". Temos duas hipóteses aterrorizantes: 1) a moça nem leu o livro; 2) ela LEU o livro.

Este é o problema: o próprio sucesso de uma elite intelectual de farsantes, ou mesmo de um projeto de estupidificação de alcance nacional, vem de um povo que ama a baixeza mental. E quem leu "povo que ama a baixeza mental" e pensou em povo que não lê livros não entendeu nada do que eu mostrei aqui. Vamos voltar à srta. Kéfera Buchmann: ISTO é livro no Brasil. Outro exemplo: na época do casamento do príncipe William, eu passei em frente a uma livraria e vi dois livros, grossos, sobre o assunto.

O Socialismo é o encontro do totalitarismo de uma elite com a baixeza mental geral de um povo. Vou tentar explicar pelo caso do Brasil.

Você percebeu que a cultura brasileira virou circo de horrores principalmente no governo PT? O que Lula tem a ver com isso se sempre tivemos um povo culturalmente miserável? O governo PT combinou uma elite intelectual de medíocres com status com um povo com oportunidade de chegar a essa elite intelectual e a esse status sem a obrigação de progredir muito intelectualmente. Foi assim que Lula nos dois mandatos e Dilma Rousseff em grande parte do primeiro conseguiram aprovação acima de 60% e quase foram eleitos em primeiro turno. Foi assim que Lula foi reeleito em 2006 com a terceira maior votação da história da humanidade no ano seguinte à descoberta do Mensalão, que foi a compra do Poder Legislativo pelo Poder Executivo. Em 2002, 2006 e 2010, há quem afirme que o PT chegou à Presidência da República eleito democraticamente. ESTE é o problema.

Os professores universitários na maioria não faziam oposição aos movimentos de esquerda porque ou eram profissionais abaixo de medíocres ou estavam muito focados nas próprias vidas. E os pobres de personalidade medíocre gostavam do governo PT porque o PT tinha cotas para negros e alunos de escolas públicas nas melhores universidades.

Os grandes jornais apoiavam a militância de esquerda, inclusive tratando os antiesquerdistas como se eles não existissem a não ser para depreciá-los, em troca de garantir dinheiro público a pretexto de publicidade de empresas estatais ou do próprio governo, e se sustentarem com cada vez menos credibilidade (ou cada vez menos credibilidade e leitores) juntando nulidades militantes aos apadrinhados e às amantes dos diretores (diga-se de passagem que a jornalista Sandra Gomide foi menos conhecida como repórter e editora de Economia do jornal O Estado de São Paulo do que como vítima de homicídio pelo ex-namorado que era o diretor de redação do mesmo jornal). Enquanto as escolas públicas e a "mainstream media" cumprem ordens superiores para ensinar LGBT-Feminismo, anticristianismo ou eurofobia como verdades superiores, qualquer cidadão com um cômodo grande abandonado pode fazer um projeto sociocultural com trabalhos em materiais recicláveis.

A "mainstream media" bajula o governo PT, a militância afro e a militância LGBT-feminista em troca de dinheiro público, e o máximo de inteligência permitida nos jornais e no meio artístico é um ou outro crítico ao governo ou aos piores grupos esquerdistas quando não há como não existir a crítica. Enquanto isso, alguns programas de televisão, como "Eliana" no SBT, têm quadros de seleção de vídeos populares no Youtube, alguns bons, outros idiotas.

Ah, e o maior cliente das editoras é o governo, nas três esferas. Aí, aparentemente, qualquer paspalhão ou paspalhona pode publicar um livro impresso, que pode ser um romance mequetrefe, uma coletânea de poesias sem rima ou uma discussão de banalidades, pessoas com algo bom ou relevante para compartilhar são expulsas para a internet e a editora garante um contrato de imprimir livros didáticos ou publicidade estatal superfaturada.

Aí, eu leio um livro excelente que eu baixei na internet e nem entro em uma grande livraria onde ninguém imagina que um livro como aquele existe, e a inculta sou eu.

Entre as pessoas cultas em geral, parece que ninguém se espanta com uma deputada ter um projeto de lei para proibir a fabricação de armas de brinquedo em nome do combate à violência (PL 4007/2012, http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=546895); ou com o doutor Jairo Bouer ter publicado uma notícia de um estudo que diz que homens clientes de prostitutas têm o mesmo perfil dos estupradores (http://doutorjairo.blogosfera.uol.com.br/2015/09/01/homem-que-paga-por-sexo-tem-muito-em-comum-com-estuprador-diz-estudo); ou com a campanha do restaurante Ramona, em São Paulo, intitulada "Menu Injusto", baseada no dado inverossímil e nunca observado de que uma mulher ganha 30% a menos que um homem pelo mesmo trabalho (https://br.noticias.yahoo.com/blogs/vi-na-internet/restaurante-cobra-30-a-mais-de-homens-em-campanha-181810814.html); para ficar em três exemplos. Mas toda a estupidez atual no Brasil, e em outros países, só é tão vulgar porque o que era entendido popularmente como moral e cultura antes disso eram uma mistura de glorificação do fracasso, exaltação do semianalfabetismo, complexo de culpa, síndrome do pânico e repressão sexual. Bastou a militância de esquerda ou qualquer babaca exibicionista oferecer algo menos estúpido para conseguir legiões de admiradores entre as pessoas mais inteligentes. Quando o movimento esquerdista não pôde esconder as próprias estultices, foi exatamente porque já tinha ganhado um espaço quase esmagador na vida social. E eu digo esmagador não apenas politicamente, também, e principalmente, em termos culturais. Eu publiquei "Direita cristã, acabou! - parte 1" três dias antes daquele texto do Ancelmo Gois especificamente sobre a oposição cultural de direita.

A tragédia não é só a destruição da alta cultura, nem é só a elevação do lixo cultural a posições de destaque. É que as duas coisas estão se fundindo, não apenas como se alta cultura e baixa cultura fossem iguais, mas como se elite cultural e povo inculto também fossem.

Apêndice

O império da ignorância, por Olavo de Carvalho, Diário do Comércio (Associação Comercial de São Paulo), 10/09/2015. Disponível em http://www.dcomercio.com.br/categoria/opiniao/o_imperio_da_ignorancia.

O império da ignorância

São Paulo, 10 de Setembro de 2015 às 17:31 por Olavo de Carvalho

Vamos falar o português claro: Aquele que não dá o melhor de si para adquirir conhecimento e aprimorar-se intelectualmente não tem nenhum direito de opinar em público sobre o que quer que seja. Nem sua fé religiosa, nem suas virtudes morais, se existem, nem os cargos que porventura ocupe, nem o prestígio de que talvez desfrute em tais ou quais ambientes lhe conferem esse direito.

Discussão pública não é mera troca de opiniões pessoais, nem torneio de autoimagens embelezadas: é eminentemente intercâmbio de altos valores culturais válidos para toda uma comunidade humana considerada na totalidade da sua herança histórica, e não só num momento e lugar.

O direito de cada um à atenção pública é proporcional ao seu esforço de dialogar com essa herança, de falar em nome dela e de lhe acrescentar, com as palavras que dirige à audiência, alguma contribuição significativa. O resto, por "bem-intencionado" que pareça, é presunção vaidosa e vigarice.

Todos os males do Brasil provêm da ignorância desses princípios. Políticos, empresários, juízes, generais e clérigos incultos, desprezadores do conhecimento e usurpadores do seu prestígio, são os culpados de tudo o que está acontecendo de mau neste país, e que, se esses charlatães não forem expelidos da vida pública, continuarão aumentando, com ou sem PT, com ou sem "impeachment", com ou sem "intervenção militar", com ou sem Smartmatic, com ou sem Mensalão e Petrolão.

Desprezo pelo conhecimento e amor à fama que dele usurpa mediante o uso de chavões e macaquices são os pecados originais da "classe falante" no Brasil.

Só o homem de cultura pode julgar as coisas na escala da humanidade, da História, da civilização. Os outros seguem apenas a moda do momento, criada ela própria por jornalistas incultos e professores analfabetos, e destinada a desfazer-se em pó à primeira mudança da direção do vento.

A cultura pessoal é a condição primeira e indispensável do julgamento objetivo. A incultura aprisiona as almas na subjetividade do grupo, a forma mais extrema do provincianismo mental.

Vou lhes dar alguns exemplos de desastres nacionais causados diretamente pela incultura dos personagens envolvidos.

Só pessoas prodigiosamente incultas podem ter alguma dificuldade de compreender que uma eleição presidencial com apuração secreta, sem transparência nenhuma, é inválida em si mesma, independentemente de fraudes pontuais terem ocorrido ou não.

O número de jumentos togados e cretinos de cinco estrelas que, mesmo opondo-se ao governo, raciocinam segundo a premissa de que a sra. Dilma Rousseff foi eleita democraticamente em eleições legítimas, premissa que lhes parece tão auto evidente que não precisa sequer ser discutida, basta para mostrar que o estado de calamidade política e econômica em que se encontra o país vem precedido de uma calamidade intelectual indescritível, abjeta, inaceitável sob todos os aspectos.

Quando na década de 90 os militares aceitaram e até pediram a criação do "Ministério da Defesa", foi sob a alegação de que nas grandes democracias era assim, de que só republiquetas tinham ministérios militares.

Respondi várias vezes que isso era raciocinar com base no desejo de fazer boa figura, e não no exame sério da situação local, onde a criação desse órgão maldito só serviria para aumentar o poder dos comunistas. Mil vezes o Brasil já pagou caro pela mania de macaquear as bonitezas estrangeiras em vez de fazer o que a situação objetiva exige. Esse caso foi só mais um da longa série.

Mesmo agora, quando a minha previsão se cumpriu da maneira mais patente e ostensiva, ainda não apareceu nenhum militar honrado o bastante para confessar sua incapacidade de relacionar a estrutura administrativa do Estado com a disputa política substantiva. Continuam teimando que a ideia foi boa, apenas, infelizmente, estragada pelo advento dos comunistas ao poder - como se uma coisa não tivesse nada a ver com a outra, como se fosse tudo uma soma fortuita de coincidências, como se a demolição do prestígio militar não fosse um item constante e fundamental da política esquerdista no país e como se, já no governo FHC, a criação do Ministério não fosse concebida como um santo remédio, com aparência legalíssima, para quebrar a espinha dos militares.

Um dos traços mais característicos da incultura brasileira, já assinalado por escritores e cientistas políticos desde a fundação da República pelo menos, é a subserviência mecânica a modelos estrangeiros copiados sem nenhum critério.

Numa sociedade culturalmente atrofiada, a coisa mais inevitável é que todas as correntes de opinião que aparecem na discussão pública sejam apenas cópias ou reflexos de modelos impostos, desde o exterior, por lobbies e grupos de pressão que têm seus próprios objetivos globais e não estão nem um pouco interessados no bem-estar do nosso povo.

Cada "formador de opinião" é aí um boneco de ventríloquo, repetidor de slogans e chavões que não traduzem em nada os problemas reais do país e que, no fim das contas, só servem para aumentar prodigiosamente a confusão mental reinante.

Como é possível que, num país onde cinquenta por cento dos universitários são reconhecidamente analfabetos funcionais e os alunos dos cursos secundários tiram sistematicamente os últimos lugares nos testes internacionais, o currículo acadêmico de um professor continue sendo aceito como prova inquestionável de competência?

Não deveria ser justamente o oposto? Não deveria ser um indício quase infalível de que, ressalvadas umas poucas exceções, o portador dessa folha de realizações é muito provavelmente, por média estatística, apenas um incompetente protegido por interesses corporativos? Terá sido revogado o "pelos frutos os conhecereis"? A interproteção mafiosa de carreiristas semianalfabetos unidos por ambições grupais e partidárias tornou-se critério de qualificação intelectual?

Não é mesmo um sinal, já não digo de mera incultura, mas de positiva debilidade mental, que os mesmos apologistas do establishment universitário fossem os primeiros a apontar como mérito imarcessível do candidato Luís Ignácio Lula da Silva, em duas eleições, a sua total carência de quaisquer estudos formais ou informais? Não chegava a prodigiosa incultura do personagem a ser louvada como sinal de alguma sabedoria infusa? Todo sujeito que, à exigência de conhecimento, opõe o louvor evangélico aos "simples", é um charlatão. Jesus prometeu aos "simples" um lugar no paraíso, não um palanque ou uma cátedra na Terra.

A origem da burrice nacional, por Olavo de Carvalho, Bravo!, dezembro de 1999 / janeiro de 2000. Disponível em http://www.olavodecarvalho.org/textos/burrice.htm.

A origem da burrice nacional

Bravo!, dez. 1999 / jan. 2000

Repetidamente um fenômeno tem chamado a atenção de professores estrangeiros que vêem lecionar no Brasil: por que nossas crianças estão entre as mais inteligentes do mundo e nossos universitários entre os mais burros? Como é possível que um ser humano dotado se transforme, decorridos quinze anos, num oligofrênico incapaz de montar uma frase com sujeito e verbo? É fácil lançar a culpa no governo e armar em torno do assunto mais um falatório destinado a terminar, como todos, em uma nova extorsão de verbas oficiais.

Difícil é admitir que um problema tão geral deve ter causas também gerais, isto é, que não pertence àquela classe de obstáculos que podem ser removidos pela ação oficial, mas àquela outra que só nós mesmos, o povo, a "sociedade civil", estamos à altura de enfrentar, não mediante mobilizações públicas de entusiasmo epidérmico, e sim mediante a convergência lenta e teimosa de milhões de ações anônimas, longe dos olhos turvos da nossa vã sociologia.

Ora, a condição mais óbvia para o desenvolvimento da inteligência é a organização do saber. Nossas energias intelectuais mobilizam-se mais facilmente em torno de uns poucos núcleos de interesse fortemente hierarquizados do que numa dispersão de focos de atenção espalhados no ar como mosquitos. Discernir o importante do irrelevante é o ato inicial da inteligência, sem o qual o raciocínio nada pode senão patinar em falso em cima de equívocos. Se, porém, cada homem tivesse de realizar por suas forças essa operação, reduzindo a um esquema quintessencial de sua própria invenção a totalidade dos dados disponíveis no ambiente físico, milhões de vidas não bastariam para que ele chegasse a obter um começo de orientação no mundo. A cultura, impregnada na sociedade em torno e resultado de sucessivas filtragens da experiência acumulada, dá pronto a cada ser humano um quadro dos ãngulos de interesse essencial, de modo que não resta ao indivíduo senão operar nesse mostruário um segundo recorte, em conformidade com os seus interesses pessoais.

Quando digo que a cultura está impregnada na sociedade em torno, isto significa que a seleção dos pontos importantes transparece na organização das cidades, nos monumentos públicos, no estilo arquitetônico, nos museus, nos cartazes dos teatros, na imprensa, nos debates entre as pessoas letradas, nos giros da linguagem corrente, nas estantes das livrarias e, last not least, nos programas de ensino.

Quem quer que desembarque num país qualquer da Europa ou em alguns da Ásia já obtém, por um primeiro exame desse mostruário, uma visão bem clara dos pontos de interesse mais permanente, que constituem uma espécie de fundo de referência cultural, bem distinto dos focos de atenção mais atual e momentânea que se recortam sobre esse fundo sem encobri-lo.

Só de andar pelas ruas, o cidadão aí pode enxergar os marcos que o situam num lugar preciso do mapa histórico, desde o qual ele pode medir quanto tempo as coisas duraram e qual a sua importância maior ou menor para a vida humana.

Se ele olha para os cartazes dos teatros, nota que certas peças estão sendo reencenadas este ano porque são reencenadas todos os anos, ao passo que outras, que fizeram algum sucesso no ano passado, desapareceram do repertório. Basta isto para que ele adquira um senso da diferença entre o que importa e o que não importa.

Ao entrar em qualquer livraria, o contraste entre as estantes onde estão sempre expostos os mesmos títulos essenciais e aquelas onde os lançamentos mais recentes se revezam mostra-lhe a diferença entre o patrimônio escrito de valor permanente e o comércio livreiro de alta rotatividade.

Na escola, ele sabe que vai aprender certas coisas que seus pais, avós e bisavós também aprenderam, e outras que são novidade e que talvez terão desaparecido do currículo na geração seguinte.

Tudo, em suma, no ambiente plástico e verbal contribui para que o indivíduo adquira, sem esforço consciente, um senso de hierarquia e de orientação no tempo histórico, na cultura, na humanidade.

No Brasil isso não existe. O ambiente visual urbano é caótico e disforme, a divulgação cultural parece calculada para tornar o essencial indiscernível do irrelevante, o que surgiu ontem para desaparecer amanhã assume o peso das realidades milenares, os programas educacionais oferecem como verdade definitiva opiniões que vieram com a moda e desaparecerão com ela. Tudo é uma agitação superficial infinitamente confusa onde o efêmero parece eterno e o irrelevante ocupa o centro do mundo. Nenhum ser humano, mesmo genial, pode atravessar essa selva selvaggia e sair intelectualmente ileso do outro lado. Largado no meio de um caos de valores e contravalores indiscerníveis, ele se perde numa densa malha de dúvidas ociosas e equívocos elementares, forçado a reinventar a roda e a redescobrir a pólvora mil vezes antes de poder passar ao item seguinte, que não chega nunca.

Nesse ambiente, a difusão das novidades intelectuais, em vez de fomentar discussões inteligentes, só pode atuar como força entrópica e dispersante. Não há nada mais consternador do que uma inteligência sem cultura, despreparada, nua e selvagem que se nutre do último vient-de-paraîte e arrota uma sucessão de perguntas cretinas onde a sofisticação pedante do raciocínio se apóia na mais grosseira ignorância dos fundamentos do assunto. Acrescente-se a esses ingredientes a arrogância juvenil estimulada pelas lisonjas demagógicas da mídia, e tem-se a fórmula média do estudante universitário brasileiro. É impossível discutir com ele. Quando a mente assim deformada entra a produzir objeções numa discussão, seu interlocutor culto e bem intencionado, se não é muito enérgico no emprego da vara-de-marmelo, leva desvantagem necessariamente: quem pode vencer um debatedor tenaz que, confiante na aparente correção formal do seu raciocínio, está protegido pela própria ignorância contra a percepção da falsidade das premissas? Com um sujeito assim não cabe a gente argumentar. Cabe apenas transmitir-lhe as informações faltantes -- educá-lo, em suma. Mas, precisamente, ele não vai deixar você educá-lo, porque a ideologia de rebelde posudo que lhe incutiram desde pequeno o faz pensar que é mais bonito humilhar um professor do que aprender com ele. Eis como o menino inteligente se transforma num debatedor idiota, vacinado para todo o sempre contra qualquer conhecimento do assunto em debate.

As objeções cretinas nascem, decerto, de um impulso saudável. Não há mais notório sinal de inteligência filosófica do que a capacidade de perceber contradições, a sensibilidade para a presença de problemas. O brasileiro tem isso até demais. Contrariando o lugar-comum que afirma a nossa falta de vocação para a filosofia, eu diria que somos o povo mais filosófico do planeta. A prova disso é o nosso senso de humor. O engraçado nasce, como as perguntas filosóficas, da percepção de incongruências lógicas ou existenciais.

Mas que destino terá o jovem pensador que, a braços com o debate filosófico, se veja privado de uma perspectiva histórica, de uma visão da evolução das discussões, de um conhecimento enfim, do status quaestionis? Mesmo na doce hipótese de que por natural instinto de comedimento ele se recuse ao bate-boca estéril e prefira trancar-se em casa para raciocinar a sós, ele não passará nunca de um especulador maluco, de um novo Brás Cubas a rebuscar em vão soluções já mil vezes encontradas, a polemizar com as sombras de seus próprios enganos, a esgotar-se em perguntas estéreis e em tentativas de provar o impossível. Enfim, cansado e amedrontado de um mergulho solitário que não arrisca levá-lo senão ao hospício, ele aderirá, por mero instinto autoterapêutico, ao discurso padronizado mais à mão. Uma carteirinha do PC do B lhe dará um sentimento de retorno à condição humana. E não há nada mais perigoso no mundo do que um idiota persuadido da sua própria normalidade.

Tal é o destino da maior parte da nossa jovem inteligência. (1)

Quem esteja consciente dessas coisas não poderá deixar de admitir que elas são a conseqüência inapelável da nossa incapacidade, ou recusa, de absorver o legado histórico da Europa e do mundo. Quanto mais nos "libertamos" de um passado que daria sentido de historicidade à nossa inteligência, mais nos tornamos escravos de uma atualidade invasiva que a desorienta e debilita.

Nesse sentido, os movimentos de "libertação" e de "independência", que cortaram nossas ligações com as raízes européias, não nos libertaram senão da base mesma da nossa autodefesa, para nos deixar, inermes e sonsos, à mercê das perturbadoras casualidades da mídia e da moda. Roubaram-nos o mapa do mundo, para nos deixar perdidos no meio de um deserto onde é preciso recomeçar sempre o caminho, de novo e de novo, para não chegar a parte alguma. Destituíram-nos do senso da hierarquia e das proporções, para nos tornar escravos de debates viciados e conjeturações ociosas que não nos deixam pensar nem agir.

Oferecer a um povo esse tipo de falsa libertação é algo que está, para mim, na escala dos grandes crimes, na escala do genocídio cultural. E não é de espantar que, no meio de tantas hesitações e equívocos, ninguém seja capaz de perceber a ligação óbvia entre esse tipo de iniciativas "modernizantes" e o estado catastrófico de uma cultura que se entrega sem reação, por mínima que seja, ao estupro midiático internacional. Não é de espantar que ninguém note o elo de cumplicidade -- secreta mas indissolúvel -- entre o fetichismo da independência estereotipada e a realidade da dependência crescente.

Não me perguntem portanto o que acho de Mários, Oswalds, Menottis, Bopps e tutti quanti, bem como de seus cultores e discípulos atuais que, desmantelando o idioma sob pretextos morbidamente artificiosos e pedantes, o entregam inerme nas mãos de quem faz dele a lixeira dos detritos do inglês midiático. Nem me peçam, em público, para opinar sobre quaisquer outros importadores de novidades culturais que de tempos em tempos refazem o Brasil no molde do último figurino.

Esse tipo de reformador cultural deslumbrado, que, sem uma autêntica visão universal das coisas e movido somente pela comichão de atualismo, quando não pela ânsia de épater le bourgeois, se mete a destruir valores que não compreende, é a praga mais nefasta que pode se abater sobre uma cultura em formação, induzindo-a a destruir as bases em que começava a se erguer e não pondo em seu lugar senão pseudo-valores efêmeros cuja rápida substituição abrirá cada vez mais, sob os pés dela, o abismo sem fim das duvidas ociosas e das perguntas cretinas.

Se queremos preservar e desenvolver a inteligência do nosso povo, em vez de a esfarelar em tagarelice estéril, o que temos de importar não é a novidade: é toda a História, é todo o passado humano. Temos de espalhar pelas ruas, pelos cartazes, pelos monumentos, pelas livrarias e pelas escolas as lições de Lao-Tsé e Pitágoras, Vitrúvio e Pacioli, Aristóteles e Platão, Homero e Dante, Virgílio e Shânkara, Rûmi e Ibn 'Arabi, Tomás e Boaventura.

Quem, antes de fortalecer a inteligência juvenil com esse tipo de alimento, a perturba e debilita com novidades indigeríveis, é nada menos que um molestador de menores, um estuprador espiritual. E, se o faz com intuito político ou comercial, o crime tem ainda o agravante do motivo torpe.

08/11/99

NOTA

  1. Tão desprovido de retaguarda histórica está o nosso povo, que o impacto do show business, entre nós, é mais profundo e devastador do que em qualquer outra parte.

    Tombando como bombas sobre uma superfície mole e disforme onde nada lhes resiste, as imagens dos os ídolos da TV assumem a dimensão de arquétipos formadores. O peso de 50 milênios de história da civilização recua para uma distância inalcançável, torna-se evanescente e como que irreal, enquanto umas aparências que se agitam na telinha ocupam todo o espaço visível e se impõem como a única realidade.

    Querem medir a profundidade desse impacto? Reparem nos nomes das pessoas. A cada nova investida da mídia, uma nova geração de brasileiros se desgarra da história para flutuar, como asteróides errantes, no mundo das identidades imaginárias: chamam-se "Michael" ou "Diane", quase que invariavelmente grafados Máiquel, ou Máicom, e Daiane). Inútil explicar isto pelo mero senso de macaquice. O fenômeno reflete uma doença mais profunda: a completa vulnerabilidade de um povo desprovido do senso de retaguarda histórica.

    Não estou criticando os pais dessas crianças. O que os motiva é um impulso elevado e nobre. Dar nome a uma criança é libertá-la da escravidão natural e protegê-la sob o manto da tradição e da cultura. É subtraí-la da insignificância empírica para elevar sua existência a um sentido universal. O nome de um anjo, Miguel, Gabriel, faz de seu nascimento uma mensagem de Deus. O nome de um santo, João, Pedro, Teresa, Inês, alista-a entre os beneficiários de acontecimentos miraculosos. Os de um animal nobre, de um astro do céu -- Leão, Hélio e Eliana -- associam-na ao simbolismo espiritual das coisas da natureza. Ao chamar suas crianças de Máiquel e Daiane, o brasileiro pobre expressa o protesto da sua alma contra a sociedade que as condenou a uma existência irrisória e cinzenta, e busca associá-las à corrente dos prestígios que representa a vida realizada, plena, feliz. Mas, em primeiro lugar, Máiquel e Daiane são falsos sentidos universais. Não são nomes de gente. São griffes, copiadas errado de uma língua desconhecida, falada num país distante do qual essas crianças estão ainda mais excluídas do que de uma possível vida feliz na sua terra natal. Para augurar uma vida feliz a essas crianças seria preciso chamar-lás Miguel e Diana, nomes de forças sutis sem referência geopolítica. A modulação norte-americana exorcisa o arcanjo e a deusa, não deixando em seu lugar senão os rótulos que farão de duas vidas humanas os reflexos anônimos de duas imagens efêmeras.

    Há nesse hábito brasileiro um fundo de autocondenação, um evidente sintoma depressivo. Chamar a uma criança Máiquel ou Daiana é declarar que ela só seria feliz se tivesse nascido nos Estados Unidos. Mas ao mesmo tempo seu próprio nome, com grafia errada, prova que não nasceu. Ela está, portanto, condenada ao infortúnio.

    Esses nomes não são bons augúrios, como os do arcanjo São Miguel e da deusa Diana: são pragas sinistras lançadas sobre inocentes. Precisamente por carregar nome grotescos essas crianças terão dificuldade de ascender socialmente no seu próprio país. Em segundo lugar, o personagem cujo nome se copia é, em si mesmo, um nada, um fogo-fátuo, destinado a desaparecer sob a maré de novas imagens da mídia. Aos quarenta anos, quem carregue seu nome será um anacronismo vivo, como o é hoje quem se chame Neil ou por conta de Neil Sedaka ou Pat em homenagem a Pat Boone.

    As intenções dos pais terão se desvanecido junto com essas glórias de quinze minutos. Os nomes dessas crianças serão as marcas aviltantes de uma irrecorrível condenação à insignificância.

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